Você recorda de como era a Páscoa na sua infância?
Uma Provocação Necessária.
Até onde minha memória afetiva alcança, recordo-me de pequenos ninhos feitos com barba de pau, dentro de minúsculos cestos de vime que eram guardados, em seguida, para o próximo ano. Chocolates? – contarei no final.
No período pascal das famílias que perpetuavam os rituais da Igreja Católica Apostólica Romana, as práticas da Semana Santa sempre foram curiosos pela austeridade que não combinava com o ambiente, sempre alegre e barulhento. Para uma criança entender como e de que maneira, em poucos dias, após a alegria do Natal iniciaria um período inverso, um período de constrição, de poucas falas, de poucas risadas, de poucas brincadeiras e com uma alimentação restrita ao mínimo pelo jejum, confesso que foi difícil.
Recordo que os ovos das galinhas eram abertos no limite para sair a clara e a gema para logo se transformar em “ovos de páscoa” com seu interior recheados de amendoins torrados no forno do fogão a lenha que ainda quentes eram jogados numa calda e secos numa peneira. Isso era o “pecado da gula” das crianças da casa. A estreita passagem era fechada com papéis que vinham de algumas compras, recortados e colados sobre o “burado” com claras em neve.
Simulação cesto com “Ovos de Pascoa”
A Páscoa para mim é prenúncio do inverno e os presentes, diferentementes dos dias atuais, eram parcos e longe de serem lúdicos. Recordo que ganhávamos roupas de lã em especial blusões tricotados pelas mãos hábeis da Ilse e Helena Tomazelli e da tia Nayr. O ritual ainda me persegue na memória. Os blusões do ano anterior eram cuidadosamente desmanchados e o espaldar das cadeiras servia para enrolar a lã. As “meadas” seriam lavadas em água quente e penduradas até secar. Com essa prática, os sinais da lã desapareciam tornando-as “nova”. Fazer os rolos com os fios, isso sim era um bela brincadeira.
Meu gosto por rituais cristãos, sacros por excelência, tem seu berço na minha infância mesmo sem entender nada e o que significavam. Os rituais da Quaresma são meus preferidos. No início da noite quem estivesse na casa se ajoelhava ao redor de uma enorme mesa da cozinha para a reza do terço. E, cada uma das Estações dos Mistérios Dolorosos vinham pausadamente. Ficava atento para aprender como era recitada a oração, ou era em Latim ou no dialeto italiano. Para mim era uma disputa interna para ver quem e em que língua seria iniciado as prédicas. Um detalhe,os homens só respondiam. Durante todo período da Quaresma esse ritual se repetia.
A alimentação do período quaresmal era seriamente controlada que dá sentido a abstinência. No café da manhã era pão torrado com leite e café servido num prato fundo. Levei tempo até entender que neste período tudo era diferente e estranho pois nunca faltava geléia, manteiga, queijo e salame na mesa. De uma hora para outra, sumia tudo. Contudo, a polenta brustolada na chapa do fogão nunca faltou.
As refeições, almoço e jantar, obedeciam o tempo de recolhimento.O almoço era outra parte do ritual. Ainda existe um pedaço de trilho de trem pendurado com um martelo de ferro. Isso era a forma de chamar quem estava trabalhando nas parreiras para o almoço. Nas outras épocas do ano dava-se umas três ou quatro marteladas, na quaresma somente uma. O Feijão era recorrente no almoço. No jantar virava um gostoso “minestrone” (caldo de feijão) com massa os “fidelini” – outra criação do dialeto ou ainda cabelo de anjo para identificar a massa mais fina, A polenta sempre presente.
“Sino” e martelo. Originais. Foto cedida pelo Borgo28gramado.
Até a chegada da sexta feira santa todos adultos passavam pelo sacramento da Confissão. Neste dia as janelas da casa permaneciam fechadas e não se ouvia “um pio” sequer. Falava-se baixo em qualquer situação, na mesa o silêncio era comandado pelo olhar do nonno ou pelo seu dedo em frente aos lábios. Muito tempo depois é que entendi a razão e o porquê de todas as imagens sacras da casa serem retiradas antes das 15 horas e o porquê de só reaparecerem no sábado de Aleluia.
Na rua, o caminhar barulhento dos tamancos diminuiam. A atenção aos animais ou qualquer trabalho que necessitasse maiores esforços como a ordenha das vacas, era pela manhã, antes do sol nascer.
O comercio local, diferente dos dias atuais, oferecia sardinhas no azeite em vidros grandes consumidas com pão de milho e ovos na salmoura com saladas. Recordo do cheiro forte do bacalhau. Neste dia, dormia-se muito cedo e fazer com que nós crianças “entrasse nos eixos” era quase impossível pois este momento culminava com o encontro dos primos que vinham de outras localidades. Fazia-se de tudo para que o assoalho do sótão não estalasse. Éramos entre seis a oito crianças.
No sábado de Aleluia era tudo diferente. Era alegre. O café iniciava cedo. Havia a mesa dos “grandes” e outra, um pouco menor, para nós, crianças. Por incrível que possa parecer a nonna e a tia Nayr davam conta de servir todos nós. A gemada ficava por conta da tia Francisca. Eu voltava a comer pão com figada e uma generosa camada de nata por cima.
No domingo de Páscoa era muito mais agitado e tudo começava muito cedo. Era o dia de ir à Missa. Uma caravana tanto para ir ao centro quanto à volta para o almoço. O “valo” do churrasco acomodava espetos de todos os tipos de carne para todos os gostos da família que não era pequena. Novamente, uma grande mesa para os “grandes” e outra para as crianças. Muito vinho e suco de uva. Não recordo das cervejas até porque a geladeira “Consul” entra na casa nos anos 70 e o fogão a gás em 74. Contudo a televisão chega em 1969 para saciar a curiosidade do espetáculo lunar.
Ninguém ousava entrar no quarto dos nonnos mas sabíamos que lá estavam guardados chocolates em grandes latas ou sacos plásticos. Essa era a surpresa do Domingo de Páscoa junto com os ovos das galinhas repaginados distribuídos no entorno da casa. Como essas gulodices chegavam até a casa, com os anos, deixou de ser um “mistério”, contudo a mesma regra de não entrar no quarto continuava.
Casais Francisco e Angelina Perini com João Ernesto e Medi Neugebauer. Foto de 08.04.1953
O casal João e Medi (como era chamada) Neugebauer, proprietários da marca Chocolates com o mesmo nome, havia anos, comprara uma faixa de terras de Francisco Perini, ao longo da estrada que liga Gramado a Canela. Hoje, este local cede espaço para hotéis, uma loja de departamentos e um condomínio. A sua frente, o Parque Knorr.
A amizade se estendeu por décadas assim como o “fornecimento” de chocolates de vários tipos e formas sempre que vinham para Gramado. Recordo deles num carro preto enorme e sempre lustroso. As especiarias saiam do porta malas que mais parecia uma caverna dado ao tamanho e iam direto para um roupeiro.
Roupeiro. Data: 1913. Acervo cedido ao Borgo 28 gramado
Nada pior do que a partida!
Deixar a casa dos meus nonnos, para mim (creio que para todos), sempre foi uma impiedosa luta contra a tristeza. Ela me vencia até que um dia eu me rebelei… Porém isso é assunto para uma próxima oportunidade.
Casagrande
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